25.4.05

De Havana a Praga

O primeiro pormenor em que se repara é a capa. Uma bela rapariga, num vestido vermelho forte, olha-nos com um semblante determinado e desafiador enquanto mantém a sua mão firmemente apoiada sobre um copo onde está encarcerado um insecto exótico. Não é caso único capaz de ilustrar o cuidado que a etiqueta Mole coloca no trabalho gráfico que ajuda os seus discos a darem nas vistas, entre os milhares de CD que enchem os escaparates. O truque resulta. Foi por causa da sua excelente capa que agarrei em “Nice Traps”, da banda checa Khoiba, com a curiosidade bem acesa para descobrir que música se poderia encontrar lá dentro. E posso agora afirmar, com conhecimento de causa, que estamos perante uma situação em que o conteúdo é pelo menos tão bom quanto o embrulho.
Os Khoiba executam uma pop que vagueia pelos terrenos da electrónica, largamente condimentada com instrumentos “tradicionais”. As suas canções evocam algumas características da música de Björk, nos tempos em que esta dava os primeiros passos na carreira a solo, e quem desconfie então que escute os temas “Feedback” e “Terribly”. Dizer que estamos perante um fenómeno de mimetismo em relação à obra da célebre islandesa seria, no entanto, uma despropositada barbaridade. E o mesmo se poderia dizer se, numa análise apressada, se catalogassem os Khoiba como uns Portishead menos depressivos, tentação que pode surgir com a audição de “Facilities” ou de “The Deepest Nightmare”. A banda tem uma personalidade própria e enormes talentos.
Deste trio oriundo de Praga sobressai a qualidade das composições e a voz serena de Ema Brabcova. Não há temas menos interessantes no álbum e o "slogan" da Mole, que anuncia “listening pearls” por cada edição que lança no mercado, aplica-se aqui como uma luva. Até agora, Khoiba apenas me soava como uma marca de óptimos charutos havanos. Mas passa a identificar uma banda a não perder de vista, por nada neste mundo. Agora dêem-me licença porque vai começar a tocar “Sonic Parts” e eu não quero perder pitada. Sobretudo porque se segue “T.I.M.E.” que abre com um Fender Rhodes que vibra como uns delicados sininhos infantis.

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24.4.05

Jazz para toda a família

Mais conhecido pela orquestra que dirigiu em numerosas gravações, Count Basie legou também para a posteridade algumas gravações com formações mais reduzidas. É o caso de um registo de 1962 que reúne a banda Kansas City 7 que, como o próprio nome deixa adivinhar, se assumia como um septeto. Nem sempre as "big bands" me deixam entusiasmado. Aprecio a força dos metais e das suas harmonias mas acontece, por vezes, que gostava de sentir maior liberdade por parte dos solistas, aspecto que, nos discos "mainstream", é geralmente sacrificado em nome da disciplina do conjunto.
É por isso que "Count Basie & The Kansas City 7" me agradou grandemente da primeira vez que o ouvi. E foi apenas hoje que o fiz, já que, apesar de se tratar de uma velha gravação que nem sequer é difícil de encontrar nas secções que se dedicam ao jazz, nunca tinha empreendido a tarefa de me dedicar à sua audição. Porém, valeu a pena. O repertório é acessível e apenas um dos temas tem uma duração superior a cinco minutos, algo que na década em que foi efectuada a sessão era coisa rara, tendo em conta os longos improvisos a que os mestres da altura se entregavam com entusiasmo.
Os sucessivos temas, dois dos quais da autoria de Basie, exalam alegria e os solistas são de primeira água. Frank Wess arranca um belíssimo solo de flauta em "Secrets" e a surdina aplicada ao trompete de Thad Jones em "I Want a Little Girl" resulta em momentos de intensa afectividade. O contrabaixo recupera o velho estilo clássico dos anos de "boom" do jazz e chega a soar como uma guitarra. Tudo é cuidado ao mais pequeno detalhe e o som da gravação é imaculado, faceta tanto mais impressionante quando se sabe tratar-se de um trabalho realizado há mais de 40 anos. Aqui está, pois, um CD de jazz bem disposto e indicado para toda a família.

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O resgate dos calções de banho

Acho-lhes muita graça. É música positiva, elaborada para escutar numa esplanada à beira-mar na companhia de um cocktail tropical, enquanto se lava a vista pela paisagem em redor. O primeiro disco dos De-Phazz que comprei foi “Death By Chocolate”. Antes de me dirigir à caixa para proceder ao pagamento da mercadoria, apenas escutei os dois primeiros temas. Mas foi o suficiente para me dar por convencido. “Heartfixer”, com um “riff” de teclas a lembrar o Herbie Hancock de início dos anos 60, fez subir imediatamente o nível de adrenalina. E a voz adocicada e deliciosamente irónica em “Something Special” forçou-me a retirar o disco do escaparate para o acrescentar à minha colecção. A letra dessa canção é uma pérola de inocência e perversidade. O verso que alude à morte de Brian Jones, afogado na piscina da sua casa, é a melhor ilustração desse detalhe decisivo.
Se os “posts” anteriores tivessem incluído malhas de baixo na área de electrónica e dança, universo em que o que se mostra difícil é escolher, a linha de “Between 2 Thieves”, o segundo tema do álbum “Detunized Gravity”, teria certamente direito a um destaque. Tudo isto serve de introdução aos encómios que me merece a mais recente edição dos De-Phazz. Chama-se “Natural Fake” e está recheado de canções atraentes, elegantes, com óptimos arranjos que misturam instrumentos reais, tecnologia e vozes de eleição. Não sendo eu um fanático de “soul”, a arte dos De-Phazz neste terreno fornece-me a excepção que confirma a regra. Talvez porque a banda de Pit Baumgartner encontrou uma saborosa receita que junta aquele género com o jazz, dando suficiente espaço nos seus discos para a intervenção de trombones e trompetes que asseguram à música um indiscutível “glamour”.
Em “Natural Fake” não faltam exemplos. A começar pelo instrumental que serve de arranque ao álbum, intitulado “Un Ange Passe”. São 18 canções apelativas, em que nem sequer falta o tom “bluesy” da “slide guitar”, como sucede em “Backstreets Of My Mind”. Ecletismo, modernidade e astral em alta. Respira-se Verão no novo disco dos De-Phazz. Com esta banda sonora, dá vontade de ir já ao armário resgatar os calções de banho da gaveta onde passaram o Inverno.

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23.4.05

Mais dez malhas de baixo

Já desconfiava que isto ia acontecer. Assim que coloquei “online” o “post” anterior, lembrei-me de mais alguns temas em que o trabalho do baixo deve ser justamente realçado. E como o comum dos mortais não dá conta da importância do instrumento e nem sequer nota a sua presença, fazer justiça é, neste campo, matéria de verdadeiro serviço público. Então, também é assim:

“The Real Me” – The Who – John Entwistle era um mestre. E a ele se deve, em boa parte, a tradição dos anos sessenta e setenta, em que o executante da viola-baixo era aquela figura serena e recatada que se encostava a um canto do palco a dedilhar uma coisa parecida com uma guitarra normal mas que apenas tinha quatro cordas.

“Siberian Khatru” – Yes – Chris Squire no seu melhor. O som é seco, claro e directo. Tal como sempre sucedia nos temas dos Yes, a mão esquerda passeava, sem descanso, pelo braço do baixo ao longo dos extensos temas. Um delírio.

“Living Through Another Cuba” – XTC – Faz lembrar as frases curtas e simples de Sting nos tempos dos The Police. Bass’n’Drum ainda antes de o conceito existir.

“Moondance” – Van Morrison – Mais “swing” num dos melhores temas de sempre de Van, The Man. Que seria desta canção se o baixo não estivesse lá?

“New Year’s Day” – U2 – O baixo manda sem contestação e impõe a sua vontade. Deve ser um dos melhores arranques de um tema pop, entre os que o fazem recorrendo ao instrumento. Uma peça de antologia.

“School” – Supertramp – Na famosa secção instrumental que tem o piano como principal protagonista, não se costuma registar o labor do baixo. Uma falha que deve ser corrigida.

“No More Heroes” – Stranglers – O mote do tema é dado logo de início através do som grave e duro de Jean-Jacques Burnell. Nem mais, nem menos do que aquilo que se exige de uma boa canção da era do punk-rock.

“Love Is The Drug” – Roxy Music – Aqui está um tema que podia integrar a banda sonora de uma série policial. O baixo cria o ambiente irresistível de “suspense” que marca o início da canção.

“My City Was Gone” – The Pretenders – Mais uma canção que nunca teria visto a luz do dia caso não se desse a circunstância de alguém ter inventado uma malha de baixo destinada a figurar nos anais do rock.

“My Bag” – Lloyd Cole & The Commotions – O baixo marca o tempo e os outros vão todos atrás. Não manda quem quer, manda quem pode.

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Dez malhas de baixo

No dia em que decidi abandonar a vocação para a música, o mundo perdeu um viola-baixo sofrível. Dadas as minhas limitações técnicas, comecei por me candidatar ao lugar de guitarra-ritmo de uma banda que dava os seus primeiros passos. Mas o problema deles era que não estavam satisfeitos com a “performance” do esforçado manuseador do instrumento de quatro cordas que originava as notas mais graves. Nunca tinha experimentado tocar tal coisa. Mas, animado de espírito empreendedor e de gosto pelos novos desafios, aceitei o convite para uma “audição”. Fui aceite. Acho que apreciaram, sobretudo, o estilo das piadas que o nervosismo e a vontade de não falhar me inspiraram. O facto de não demonstrar relutância perante o ecletismo do repertório também deve ter ajudado. De Peter Frampton a Led Zeppelin, era só pedir. Após umas horas a escutar os temas exigidos, lá conseguia alinhar as notas, sem erros dignos de registo.
A bateria é o primeiro elemento de fascínio que um adolescente sente pelo rock. Segue-se a guitarra. Passados esses primeiros tempos de deslumbramento, o ouvido concentra-se noutros terrenos. Mais discretos mas não menos importantes. Lembro-me de ter começado a dar atenção ao trabalho de Roger Glover, através da audição dos discos dos Deep Purple. E julgo que, a partir daí, Michael Rutherford, John Paul Jones, Chris Squire e muitos outros passaram a ocupar um lugar especial entre os meus músicos preferidos. Cada novo tema que escutava fornecia uma oportunidade para detectar, por detrás da muralha de guitarras e sintetizadores, o que andavam aqueles executantes a fazer com o objectivo de assegurarem os alicerces sobre os quais se erguiam os edifícios sonoros que me enchiam os ouvidos.
Ainda hoje é assim. Logo numa primeira audição, dou por mim a dar particular atenção ao trabalho do baixo eléctrico ou do contrabaixo. Daí que tenha decidido fazer um lista incompleta e altamente discutível de dez malhas de baixo que me vêm à memória de repente e sem grande reflexão. Para já, fiquemo-nos pela pop/rock. Então é assim:

“Bourée” – Jethro Tull – Bach reconstruído, com “swing” e boa técnica.

“The Love Cats” – The Cure – Um som poderoso e profundo como só o contrabaixo é capaz.

“Melting Pot” – Booker T & The MG’s – Quando o baixo entra é outra música.

“Walk On The Wild Side” – Lou Reed – Na verdade, são dois baixos: um eléctrico e outro acústico.

“Once In A Lifetime” – Talking Heads – Com duas notas apenas se põe o melómano com a espinha arrepiada.

“Pictures Of Home” – Deep Purple – É preciso aguardar quase pelo fim do tema para desfrutar do melhor rasgo de sempre de Glover.

“Sultans Of Swing” – Dire Straits – Por debaixo das guitarras ornamentadas está um bloco grave e seguro como uma rocha.

“Peace Frog” – The Doors – Não fôra a entrada em cena do baixo e que força restaria ao “riff” da guitarra com o pedal “wah-wah”?

“Voices Inside My Head” – The Police – Escutei a linha do baixo pela primeira vez no concerto da banda no Estádio do Restelo, em 1980. Adesão imediata.

“Money” – Pink Floyd – O tempo é um 7/8. E o “riff” é um clássico de Roger Waters. Incontornável.

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