29.12.04

A festa de Byron

“Ivey-Divey”, de Don Byron, já aqui foi referenciado como um dos álbuns que valeu a pena conhecer em 2004. O clarinetista tem saltado de estilo em estilo ao longo da sua carreira e tão depressa entra pelos terrenos do “free jazz” como decide, depois, fazer incursões na clássica ou no “funky”. Desta vez, Byron surge acompanhado pelo pianista Jason Moran e pelo baterista Jack DeJonhette, assinando um disco que é uma autêntica festa para os ouvidos.
A receita integra “post-bop” e “swing”, manipulados por três músicos de horizontes largos e espírito inventivo, que em cinco dos 12 temas se socorrem das ajudas de Ralph Alessi, no trompete, ou de Lonnie Plaxico, no contrabaixo. Não há uma única faixa de “Ivey-Divey” que não seja credora de interesse mas, ainda assim, destacaria “I Want To Be Happy”, “Somebody Loves Me”, “Lefty Teachers At Home”, “Leopold, Leopold…” e uma versão do clássico de Miles Davis “Freddy Freeloader” entre as principais iguarias a desfrutar neste álbum.

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28.12.04

Gomes e Gomez, Lda

Nunca me passou pela cabeça que Gomez pudesse ser nome capaz para uma banda de “rock”. Talvez por via da minha limitada capacidade para entender os tempos que correm, fui achando que o apelido estava exclusivamente destinado a futebolistas. Desde o Fernando ao Nuno, passando pelo Ricardo. Estava enganado e o equívoco só se desfez depois de ter concretizado uma incursão recente sobre as prateleiras, em franca expansão, onde o paul arruma, com metódica ternura, a sua colecção de discos.
Interessado em cravar uns CD emprestados para transpor para o meu iPod, lá descobri um álbum desta banda britânica que o paul tinha conseguido, até agora, esconder da minha gula por novidades. Não faço ideia por que motivo insondável o co-autor deste blog foi capaz de me ir convencendo que na sua colecção de CD dificilmente haveria algo que me pudesse despertar um mínimo de interesse. Provavelmente, tudo se fica a dever ao facto de, na primeira vez em que me foi dado o privilégio de vislumbrar a “discoteca” em causa, os discos estarem, por falta de alternativas, arrumados numa caixa de plástico do género das que habitualmente se compram nos hipermercados com o objectivo de guardar os produtos de limpeza doméstica.
Certo é que foi o nome da banda, estampado na lombada, que me despertou a atenção. Retirei o disco do seu lugar e perguntei ao paul que espécie de CD era aquele. A resposta foi curta mas elucidativa. “É ‘rock alternativo’ do melhor”. Como tenho confiança nas opiniões deste ilustre mas injustiçado guitarrista, decidi trazer o disco dos tais Gomez para casa. Depois de ouvir o CD, intitulado “Bring It On”, e que agora sei tratar-se do álbum de estreia deste quinteto, fiquei surpreendido por o paul não me ter dado a conhecer a banda mais cedo. Mas enfim. Mais vale tarde do que nunca.
É que os Gomez soam como um velho grupo de “blues-rock” mas sem cometerem os excessos dos seus antecessores. Ou seja, inspiram-se no que é bom e deixam de parte aquilo que já é datado e merece ficar restringido a uma época de experimentação, quando as bandas que exploravam o estilo não eram respeitáveis se não fossem capazes de assegurar vinte minutos de solos desenfreados, preferencialmente executados por dois ou três guitarristas talentosos, embora nem sempre sensatos.
O álbum foi lançado em 1998. Mas podia muito bem ter surgido nos escaparates durante os anos 70 que ninguém se escandalizaria com o facto. E, tal como agora, teria merecido, pelo menos da minha parte, a atenção que merece. Quanto mais não fosse por incluir um tema “bluesy” intitulado “Love Is Better Than A Warm Trombone”. O que mais se pede de um disco de “blues-rock” que não seja uma boa colecção de canções temperadas com uma dose de humor?

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“Light In The Dark”, Claudio Roditi

O título do álbum talvez não pudesse ser mais adequado. E inteligente. Uma luz que rompe a escuridão ou o alívio que sucede a um pesadelo são apenas duas das interpretações possíveis para a música que se anuncia na capa de “Light In The Dark”. Um trio pouco habitual nos dias que correm, pega no trompete, fliscórnio, piano e contrabaixo e, ao longo de 13 faixas, transmite a alegria das coisas simples feitas com o sentido da perfeição.
É assim que o disco do trompetista brasileiro Cláudio Roditi, actualmente fixado em Nova Iorque, justifica plenamente o investimento feito na sua edição. Não se esperem rasgos inovadores mas apenas música acessível, tocada com competência, empenhamento e, sobretudo, muito gosto por aquilo que se está a fazer. “Gypsy Groove” é um dos momentos altos deste disco, justificado pelos solos do piano e do contrabaixo. Mas há mais. Muito mais.
“Placid Mood” é uma balada composta à altura daquelas velhas canções que têm o direito de ser incluídas entre os “standards”. “This Is For You, Claudio” respira “swing” e “No Hesitation” deixa à vista um pianista tão veloz como excitante. Tudo isto é devidamente consolidado pelo entendimento entre os três músicos que participam na gravação: Roditi, que assegura os sopros, Klaus Ignatzek, pianista e compositor de mão cheia, e Jean-Louis Rassinfosse, contrabaixista que faz soar as cordas com uma clareza cristalina. Quem andar à procura de boa música para uma passagem de ano sem excesso de graves tem aqui uma boa solução.

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Ciofi, Biondi & Vivaldi

Em nome da transparência aqui fica a confissão de que já não comprava um disco de música “clássica” vai para dois ou três anos*. O tempo não chega para tudo e em cada momento é necessário definir prioridades. Acontece que, nos tempos mais recentes, a “música antiga” foi ficando para trás, sendo ultrapassada, em função das circunstâncias, pela descoberta de outros sons. Mas o gosto pelos velhos mestres permaneceu incólume, tal como andar de bicicleta é coisa que nunca se esquece.
Toda esta conversa se justifica pelo facto de ter acabado de tomar posse de um belíssimo CD que contém um pouco mais de uma hora de música composta nos idos de 1700 pelo “padre vermelho” de Veneza. Pois bem. O genial Antonio Vivaldi, conhecido durante décadas a fio apenas pela sua música instrumental, a começar pelos concertos para violino que respondem pelo título “As Quatro Estações”, fez muito mais na vida do que aquilo que o mais distraído dos cidadãos consegue hoje em dia identificar sem grandes hesitações.
É o caso dos quatro motetos que integram o CD gravado pela orquestra Europa Galante, liderada pelo violinista Fabio Biondi, com a participação da soprano Patrizia Ciofi. A música é sublime, vai direitinha à alma de quem a escuta, seja ou não crente, e é servida por uma orquestra pujante que encontra em Ciofi um protagonismo à altura das situações. O primeiro andamento de “Laudate Pueri Dominum” é suficiente para se perceber o que se segue no que respeita à alta qualidade da gravação. Cinco estrelas. E mais um disco que não vai largar o leitor de CD nos meses mais próximos.

*Exceptuando os concertos para cinco flautas, de Boismortier, aconselhados pelo Aviz.

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27.12.04

Drake, Young & Hayden

O nome assemelha-se ao de um compositor do período clássico mas as influências que se podem detectar na música de Hayden não vão tão atrás. Pegue-se, no entanto, em duas doses equilibradas de Nick Drake e Neil Young e ficar-se-á muito próximo de estar em condições de imaginar o que tem o álbum “Elk-Lake Serenade” de tão especial para oferecer. Trata-se de um consistente conjunto de 15 temas, melancólicos e intimistas, que evocam aqueles dois grandes nomes da especialidade e se mostram bem adequados para enfrentar no aconchego caseiro a época de frio que actualmente se atravessa.
Ao escutarem-se os primeiros acordes de “Home By Saturday” será difícil não vir à memória a entrada de “Out On The Weekend” que serve de arranque ao lendário “Harvest”, de Young. Em temas como “Killbear” e “1939” é Drake que se insinua entre os dedilhados da guitarra acústica e na voz de Hayden. Se a estas referências se juntar a qualidade das composições e o facto de o disco se apresentar envolto numa atraente capa de cartão, aqui fica um apreciável naipe de argumentos para fazer da edição deste disco, o quinto na carreira do músico canadiano, um feliz pretexto para acrescentar mais uma peça à colecção. Foi o que já sucedeu comigo e posso garantir que tão cedo este disco não vai deixar de servir de saudável alimento para o agradecido leitor de CD.

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19.12.04

"O Messias"

Conta a história que no Verão de 1741, depois de receber o libreto de Charles Jennens, com uma compilação de escrituras do antigo e do novo testamento, Handel só precisou de pouco mais de duas semanas para compor aquela que se mantém até hoje como uma das oratórias mais famosas de sempre, “O Messias”.
Os musicólogos contam também que, tal como era hábito nas obras de grande extensão do período barroco (oratórias, missas e paixões), Handel fez algum “copy / paste” e aproveitou um ou outro excerto dum concerto que, com o adequado arranjo, ajudou a acelerar o processo criativo.
Mas o episódio mais interessante em redor do “O Messias”, que se calhar é apócrifo, prende-se com a primeira apresentação da peça ao rei Jorge II de Inglaterra. Ao ouvir o agora famoso coral “Hallelujah” o monarca levantou-se, já que nem ele podia ficar sentado perante o “Rei dos reis”. Como ninguém se pode sentar quando o rei está de pé, toda a plateia então presente acompanhou o seu soberano e adoptou a mesma posição. Lenda ou não, a verdade é que ainda hoje em terras de sua majestade as audiências se levantam para ouvir o “Hallelujah”.
No âmbito dos Concertos de Natal de 2004 promovidos pela autarquia lisboeta, assisti ontem a uma interpretação da famosa oratória na Igreja de S. Domingos, na Baixa. As portas só abriam às 21:00, mas muito antes dessa hora já se alinhavam cá fora centenas de pessoas à espera para entrar. Por volta das 21:30, pouco antes de começar o concerto, a igreja, que é bastante grande, já estava totalmente cheia, quer nas cadeiras, quer nos corredores onde já só se cabia de pé.
A igreja de S. Domingos (que assistiu à boda de vários monarcas portugueses) sofreu um incêndio de grandes proporções que a deixou praticamente em ruínas. Actualmente tem o tecto restaurado, mas as colunas e as paredes ainda mostram os efeitos do fogo. Não sei se faltaram os fundos para a recuperação ou se foi intenção artística mas o contraste entre o avermelhado do tecto e tom quase negro das paredes dá-lhe uma certa piada.
A interpretação de “O Messias” ficou a cabo da Orquestra Metropolitana de Lisboa e do Coral Lisboa Cantat, dirigidos por Brian Shembri. Foram solistas Teresa Cardoso Menezes (soprano), Susana Teixeira (mezzo-soprano), Marco Santos (tenor) e Pedro Correia (barítono). Embora não tenham apresentado a peça completa seria injusto chamar-lhe “excertos” do Messias. A primeira parte da oratória foi quase integral enquanto a segunda e a terceira foram uma boa selecção das melhores árias e corais. Considerando que as despesas estavam a cargo de um coro amador, há que louvar não só o esforço como também a qualidade da apresentação. Se em alguns corais com vocalizos mais complicados as coisas não corriam tão bem, e se para o final já se notava algum cansaço nas vozes, o saldo global foi sem dúvida positivo. Dos quatro naipes destacaram-se os sopranos, com uma actuação segura e agradável. Dos solistas, que já são de outro campeonato, gostei especialmente das vozes masculinas.
Só tive pena que a versão apresentada não fosse a Foundling Hospital (de 1754). Ainda em vida Handel fez e dirigiu mais de dez arranjos diferentes da sua própria obra prima. Nesta, que é a única que tenho em CD (na versão da Archiv com o Paul McCreesh), a ária “But who may abide the day of his coming?” é cantada por uma segunda soprano e tem uma cadencia final absolutamente arrebatadora. Na versão original, como foi interpretado, esta ária fica a cargo da mezzo-soprano. É bonita mas menos explosiva.
No final, as palmas foram tantas e tão prolongadas que houve direito a um bis do “Hallelujah”. Desta vez, e já que estávamos de pé, ficámos a assistir de acordo com a tradição britânica.

17.12.04

A capa e o conteúdo

Diz o velho ditado que não se deve julgar um livro pela capa e o mesmo se aplica aos discos. Mas é preciso fazer uma ressalva. Há álbuns que apetece ter na prateleira nem que seja apenas por causa do cuidado trabalho gráfico em que surgem embrulhados. Para o comprovar, podem encontrar-se muitos outros exemplos, embora o que suscitou este texto tenha a ver com os CD dos Lemon Jelly. Além de conterem boa música, para relaxar ou dar ao pé, apresentam-se para consumo protegidos por cartão de elevada qualidade sobre o qual são impressas ilustrações “retro”, com cores suficientemente vivas para que os discos não passem despercebidos.
A dupla que responde por aquele nome é formada por Nick Franglen e Fred Deakin, sendo que uma das curiosidades a respeito da “banda” em causa tem a ver com o facto de este último desenvolver os seus talentos não apenas no terreno da música, enquanto DJ, mas também como “designer” gráfico. Deakin assume a responsabilidade artística pelas capas dos discos dos Lemon Jelly e não tenho quaisquer problemas em confessar que foram o isco que, um dia, me levou a escutar o seu primeiro trabalho, “Lemonjelly.ky”, uma colectânea dos três primeiros EP editados no Reino Unido.
É evidente, em qualquer circunstância, que o mais importante é o que está lá dentro registado no círculo prateado. Mas neste caso junta-se o agradável ao muito agradável. A música dos Lemon Jelly irradia ideias frescas e uma capacidade de reinventar a “pop” directa e de adesão imediata, potenciando-a através da electrónica. Tal como sucede nas capas dos dois discos já editados, os temas trabalhados por Franglen e Deakin são fortemente coloridos, com traços bem sublinhados e não dispensam uma dose de bom humor como sucede em “Nice Weather For Ducks”, incluído em “Lost Horizons”, de 2002. Música feliz, portanto.
Para os fãs desta dupla britânica, as notícias são boas. Está previsto para o final de Janeiro de 2005 o lançamento do seu terceiro CD. Chamar-se-á “’64-‘95” e promete respeitar as características dos seus antecessores, seja na capa como no seu interior. Enquanto se espera pela chegada da nova obra, vale bem a pena ir dar uma vista de olhos pelo “site” oficial, e “caleidoscópico”, dos Lemon Jelly.

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16.12.04

Eels é que sabem

“Souljacker”, lançado em 2001, era já o quarto álbum dos Eels. Mas foi só por esta altura que, a conselho de um amigo, decidi aproveitar uma visita a uma loja para, num posto de escuta, me inteirar do que se passava de tão especial com esta banda. Os elogios que tinha escutado foram de tal forma insistentes que a expectativa era elevada. E alguns minutos depois de ter iniciado a respectiva audição tive que me dar por vencido e convencido.
O que me agradou de imediato foi o sentido da economia presente na música dos Eels, um dos grandes segredos dos bons álbuns de “pop/rock”, que permite fazer de um conjunto de canções simples uma espécie de livro, rico e eficiente no objectivo de inspirar sentimentos diversificados. O álbum tem um pouco de tudo, quer no que toca a estilos como também em termos de referências históricas. Num sumário abreviado, pode dizer-se que “Souljacker”, bem como a restante discografia dos Eels, pega nos traços característicos da “pop” dos anos 60, soma-lhe alguns ingredientes do “punk”, “hard-rock” e “country”, acrescentando-lhe, finalmente, os recursos actuais da electrónica para que tudo resulte num sedutor “cocktail” de modernidade.
“Fresh Feeling”, “Woman Driving, Man Sleeping”, “Friendly Ghost”, “Souljacker, Pt 1”, “Bus Stop Boxer” e “Jungle Telegraph” são algumas das faixas que ilustram eloquentemente o trabalho apurado do mentor da banda, conhecido apenas por E mas cujo verdadeiro nome é Mark Oliver Everett. É evidente que, perante tamanha e agradável surpresa, sobretudo numa altura em que me parecia que a grande maioria dos grupos de “rock” andava meramente a repisar terrenos já exaustivamente explorados no passado, fiquei com a curiosidade espicaçada para conhecer a restante obra.
Comecei por “Daisies Of The Galaxy”, lançado em 2000, que embora não me tivesse provocado um impacto capaz de competir com o que experimentei ao conhecer “Souljacker”, é um álbum de boa qualidade e inclui “Mr. E’s Beautiful Blues”, uma canção que, do meu ponto de vista, pode integrar, sem favor, qualquer lista dos melhores temas de “pop” de sempre. Prossegui com “Electro-Shock Blues”, disco mais sombrio e que, ao que explicam as biografias de E, foi gravado durante um período marcadamente negativo na vida do guitarrista. Integra, ainda assim, temas que merecem atenção, entre os quais “Going To Your Funeral, Pt 1”, “My Descent Into Madness” ou “Hospital Food”, este evocando a sonoridade crua e minimalista dos Morphine.
Desconheço ainda o mais recente CD dos Eels, “Shootenanny!”, apesar de ter surgido em 2003. Mas acabo de descarregar para o iPod aquele que foi o álbum de estreia, “Beautiful Freak”. E tenho que confessar que, a par de “Souljacker”, passou a constituir, na minha perspectiva, o par ideal na ainda curta, mas incontornável, discografia da banda. Os argumentos para a conquista deste estatuto podem ser encontrados em “Novocaine For The Soul”, “Susan’s House”, “Flower”, “Spunky” ou em “My Beloved Monster” – que integrou a banda sonora do primeiro capítulo de “Shrek” –, sem esquecer o tema que dá título a este CD. Sobre matéria de “pop/rock”, restam-me, assim, poucas dúvidas. Eels é que sabem.

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Fogo na peça

Os apreciadores das vastas qualidades do piano Fender Rhodes têm de agradecer à capacidade empreendedora de um senhor chamado, precisamente, Harold Rhodes, o facto de este instrumento ter conhecido uma forte expansão a partir do seu aparecimento no mercado em meados dos anos 60. As crónicas referem que o inventor deste instrumento começou por produzir pianos de pequenas dimensões, fáceis de transportar, permitindo aos músicos animarem as tropas aliadas durante a Segunda Guerra Mundial. Depois de Harold ter arrancado com a sua própria empresa, Leo Fender iria interessar-se pelo negócio, adquirindo-o. Mais tarde, numa nova mudança de mãos, foi a vez de a CBS ficar com o menino nos braços, assegurando a popularização de um modelo de piano que a música de fusão e a electrónica raramente dispensam.
Músicos como Chick Corea, Herbie Hancock e Joe Zawinul incluem-se na extensa lista de pianistas que nunca esconderam o seu fascínio pelo Fender Rhodes. E Zawinul, que foi um dos animadores do quinteto de Miles Davis que aproximou o jazz do rock a partir da segunda metade da década de 60, até foi autor – e executante – de “Mercy, Mercy, Mercy”, um retumbante e inesperado êxito conseguido através de um “single” retirado do álbum ao vivo do saxofonista Cannonball Adderley, de 1966, baptizado com o título daquele tema. Trata-se, aliás, de uma abrasadora sessão de “soul-jazz”, que se recomenda, e que certamente terá deixado o público em êxtase, mas não apenas pelo facto de, ao que se conta, a prestação do quinteto de Adderley nesse dia ter sido testemunhada apenas por gente convidada a quem foi proporcionado o regime de “bar aberto”.
Tudo isto vem a propósito de um álbum que fornece doses maciças de Fender Rhodes, manuseado com evidente entusiasmo e alta competência técnica por um fogoso pianista alemão, de seu nome Xaver Fischer. O disco integra dez temas de música acessível e empolgante e está recheado de solos da responsabilidade de Fischer, que surge acompanhado de uma secção rítmica de créditos impecáveis, constituída por baixo eléctrico e bateria. Chama-se “Songs For You”, foi editado em 2002 e é o terceiro fruto do labor do Xaver Fischer Trio, de quem está para surgir por aí um novo lançamento. Sobre este ilustre pano cai somente uma nódoa. Numa das duas faixas que incluem voz, a cantora escolhida revela não estar à altura da tarefa, protagonizando um trabalho com notória falta de tempero. De resto, é só colocar o disco no leitor que o Xaver Fischer Trio se encarrega de chegar fogo à peça.

P.S. - O tema do Fender Rhodes é apaixonante. Há até páginas web em que se discutem as qualidades e defeitos de cada um dos seus modelos. Ora vejam...

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14.12.04

“Three Friends”, Gentle Giant

Tratou-se de um caso de amor à primeira vista. O detalhe que serviu de rastilho à atracção que o álbum “Three Friends” sempre exerceu sobre mim foi a ilustração da capa da edição original. O desenho de três rapazes em idade escolar evocava as amizades da infância e os sonhos sobre o futuro que se alimentam nesta fase da vida. O destino e a escolha de caminhos diversos por cada um dos protagonistas eram já insinuados naquela imagem, sentimento que se confirmava através dos elementos gráficos que se podiam encontrar no interior e na contracapa.
E tudo isto ficava claro mesmo antes de qualquer contacto com a música e as letras criadas pelos Gentle Giant para integrarem aquele que era o seu terceiro disco, lançado em 1972. A própria banda esclarecia as suas intenções e a ideia essencial que esteve na base deste “concept-album”. Um curto texto explicava que o tema do disco se fundamentava na história de “três pessoas – amigos na escola mas inevitavelmente separados pelo acaso, pelo conhecimento e pelo destino”.
Apesar da capacidade inovadora e da riqueza da sua música, os Gentle Giant eram, nesse início dos anos 70, uma banda com uma popularidade muito relativa. “Meia dúzia” de fanáticos apreciava o vanguardismo destes britânicos mas a complexidade dos seus trabalhos afastava-os das multidões que, incluindo na área do “rock progressivo”, preferiam sons menos exigentes no que toca ao esforço necessário para a sua compreensão. Esta situação justifica o facto de os Gentle Giant serem, ainda hoje em dia, injustamente ignorados.
Na altura, a principal consequência deste estatuto de “banda de culto” de que gozavam expressou-se, no meu caso, através das sérias dificuldades que encontrei na tarefa de encontrar alguém que tivesse os seus discos e mostrasse disposição de os emprestar para que eu os pudesse registar numa cassete. Frequentemente, desloquei-me a lojas de discos pedindo para ouvir pelo menos alguns excertos dos LP em causa. E assim sucedeu com “Three Friends”, até que, já na era do CD, me transformei no feliz proprietário da colecção quase inteira.
O terceiro disco da banda, por todos os ingredientes que o constituem, a começar pelo tema e a terminar em cada uma das seis faixas, continua a desencadear um enorme fascínio sobre mim, como se de uma eficaz varinha mágica se tratasse. Desde a sequência instrumental de “Prologue” à inocência de “Schooldays”, sublinhada pelo vibrafone, passando pela introdução das guitarras eléctricas em “Working All Day” e pelo classicismo do refrão de “Peel The Paint”, mas também pelo paladar “folk” de “Mister Class And Quality?” e pela electricidade e o final épico da canção que finaliza o trabalho.
Um senão, apenas. Na edição em CD de que disponho, o grafismo original foi substituído pela ilustração do gigante de histórias infantis que constituiu a imagem de marca dos Gentle Giant. Embora o essencial – a música – tenha sido preservado, esta circunstância não evita que a versão em causa me pareça uma obra incompleta.

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13.12.04

Mulgrew Miller e Steve Nelson no CCB

Há oportunidades que não devem ser desperdiçadas. Por exemplo, quando uma alma caridosa decide oferecer bilhetes para assistir a um concerto com dois grandes nomes do jazz. Foi o que sucedeu no fim-de-semana passado. Munidos dos respectivos “ingressos”, eu e o paul rumámos a Belém para, no suave conforto do grande auditório do CCB, testemunharmos a passagem por Lisboa do pianista Mulgrew Miller e do vibrafonista Steve Nelson.
O momento talvez não pudesse ser melhor. Ambos os músicos atravessam uma fase de alta nas suas carreiras. Miller acaba de lançar em CD o primeiro volume com o registo da sua actuação, em trio, no clube Yoshi’s, de São Francisco, recheado de “standards” que servem de terreno para a demonstração da suas elevadas qualidades técnicas e criativas. Quanto a Nelson, é um dos pilares essenciais do actual quinteto e da “big band” do contrabaixista Dave Holland que, há alguns meses atrás, também marcou presença em terras lusitanas.
Para aquecer uma sala praticamente cheia, começou por surgir em palco o sexteto da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo. Gente nova mas que soube entusiasmar a plateia através da interpretação de alguns “clássicos”, num desfile que arrancou com “Speak No Evil”, de Wayne Shorter. Gostámos sobretudo do pianista e do baterista, apesar de os dois jovens dos sopros (saxofones tenor e alto) terem demonstrado talento e vontade. O trabalho da guitarra eléctrica pareceu um pouco mais descolorido e, quanto ao contrabaixo, lamenta-se o facto de ter ficado abafado por detrás da parede de som formada pelos restantes instrumentos. Mas o saldo foi favorável, a banda mostrou ter “swing” e não foram regateados aplausos de incentivo que justificaram plenamente um “encore”.
Um curto intervalo após a actuação do jovem sexteto português, foi a vez de surgirem os dois pesos-pesados da noite. Mulgrew Miller, um gigante – não só do ponto de vista musical – que fez o piano parecer um pequeno brinquedo, encheu a sala com os seus solos construídos, também, sobre um conjunto de “standards”. Do outro lado do palco, Steve Nelson encantou através das catadupas de notas que foi tirando do vibrafone, fazendo com o seu companheiro um duo perfeito no que toca à interpretação de temas como “Autumn Leaves” e “If I Should Lose You”.
No final, o serão foi catalogado como largamente positivo. E até me pareceu que o paul, habitualmente renitente em relação ao vibrafone, saiu do concerto mais convencido acerca das potencialidades do instrumento. Ou muito me engano, ou um dia destes vai começar a interessar-se pelos discos de Milt Jackson, Bobby Hutcherson ou Gary Burton. Além de, muito provavelmente, estar já a debater-se com a tentação de ir a alguma “clínica” comprar os CD mais recentes do Dave Holland Quintet.

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9.12.04

Uma banda com o nome certo

Acho que foi na Primavera de 1979. As romarias ao Pavilhão do Dramático de Cascais estavam a tornar-se frequentes. Após anos consecutivos de míngua, em que a vinda de bandas a Portugal era um acontecimento raro e por isso celebrado com compreensível entusiasmo, o país começou, lentamente, a integrar o roteiro das digressões. E foi naquele velho “templo” que albergou eventos como o Festival de Jazz, organizado por Luís Vilas Boas, ou o histórico concerto dos Genesis em plena fase de deslumbramento causado pela edição de “The Lamb Lies Down On Broadway”, que subiram ao palco quatro músicos formados no circuito dos “pubs” britânicos.
Os Dr. Feelgood tinham acabado de lançar mais um álbum gravado ao vivo, intitulado “As It Happens”, e a faixa “Milk And Alcohol”, que contava a experiência dos elementos do grupo numa noite de copos em que foram parar à cadeia, animava as pistas de dança onde o “disco-sound” não tinha conseguido impor os seus fracos argumentos. A casa estava cheia de gente ávida de uma noite de “rock and roll” e “rythm and blues” interpretados com a energia e o saber de quem já tinha no currículo longos anos de estrada.
Na liderança surgia Lee Brilleux, com a sua voz moldada pela cerveja e pelo tabaco, e dotado de um jeito especial para arrancar solos da sua harmónica. A banda tinha perdido, dois anos antes, o icónico guitarrista que havia estado na sua fundação. Wilko Johnson, que participou na gravação dos três primeiros discos dos Dr. Feelgood antes de decidir abandonar, tinha sido substituído por John Mayo. A este novo elemento não faltava competência para encher o som da banda que, além da guitarra, dispunha apenas de uma secção rítmica integrada por baixo e bateria, tecnicamente limitada mas altamente eficaz. Mas faltava-lhe o género de energia crua e selvagem que brotava dos “riffs” e solos de Johnson, um daqueles animais de palco a quem parecia que alguém tinha colocado umas pilhas Duracel.
Ainda assim, o concerto foi uma autêntica festa. Durante cerca de duas horas, os Dr. Feelgood forçaram, sem qualquer réstia de piedade, uma audiência de alguns milhares a dançar e saltar com raros momentos para pausas. Foi seguramente uma das mais endiabradas prestações a que assisti até hoje e, apesar de na altura ser já possuidor de “As It Happens”, optei por prolongar os efeitos da adrenalina posta à solta naquele dia, através da audição, durante meses a fio e através de uma cassete, do anterior registo ao vivo que dava pelo simples nome de “Stupidity”. O tema que dá o título ao disco, assim como “20 Yards Behind”, “All Through The City”, “Goin’ Back Home”, “Walking The Dog” e “Back In The Night” eram – e são – canções incendiárias, seguramente capazes de fornecer algum gosto pela vida ao mais céptico existencialista.
Possivelmente, nunca terá havido uma banda com um nome tão bem escolhido para caracterizar o tipo de sensação que provocava a quem a ouvia, sobretudo quando se tratava de testemunhar o fenómeno ao vivo. Foi com essa convicção que saí do Dramático de Cascais depois daquele serão inesquecível.

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8.12.04

"Yours is no disgrace"

Já lá vão alguns anos desde que recebi pelo correio uma cassete preparada por um amigo inglês com uma selecção de grandes malhas de guitarra. Infelizmente perdi-lhe o rasto (tanto à cassete como ao amigo) mas lembro-me que entre Jeff Beck, Led Zeppelin e outras sérias rocalhadas, havia duas faixas dos Yes: “The Clap” e “Yours is no disgrace”.
Como os portes não eram baratos - menos ainda para quem ganhava a vida como guitarrista convidado - e ele quis pôr o Rossio na Rua da Betesga, algumas das músicas vinham editadas. Digamos em abono da verdade que os cortes tinham algum critério, mas dos mais de nove minutos do “Yours is no disgrace” só devo ter tido direito a aproximadamente metade. Como ambas as músicas me fascinaram, e queria definitivamente conhecer os minutos que me faltavam duma delas, não descansei enquanto não resolvi o problema. Lembro-me que a data coincidiu mais ou menos com a chegada do primeiro leitor de discos compactos lá a casa pelo que um dos meus primeiros CDs foi o “Classic Yes”. À falta de melhor critério, a colectânea de 1981, foi o disco eleito unicamente porque incluía a música que eu queria. Mas valeu bem a pena o esforço financeiro. Com a excepção duma faixa menos boa, o disco era excelente e olhando agora para ele deve ser, de entre todos os que tenho nas prateleiras, aquele que tem a capa mais gasta. Como na altura havia outras prioridades musicais, mais de acordo com a minha geração, a descoberta dos Yes ficou por aí.
Foi já muitos anos mais tarde, em casa do Billy Shears, que dei de caras com os Yes num concerto gravado algures no decorrer da década de noventa (salvo erro o DVD é o “Keys to Ascension”). Fiquei impressionado com duas coisas, por um lado a imaculada interpretação de todos os músicos da banda. Jon Anderson, Steve Howe, Chris Squire, Rick Wakeman e Alan White, a composição quase original dos Yes, ainda tocavam e cantavam na perfeição. Tanto é assim, que por largos momentos ficámos na dúvida se pelo menos as harmonias vocais não seriam em playback. Por outro lado, pareceu-me incrível que tantos anos depois da explosão do rock progressivo, e sendo este um género musical que eu julgava estar longe de ser um fenómeno de massas, o concerto decorresse perante uma plateia bastante extensa e entusiasmada.
Dessa vez é que foi e decidi-me a adquirir a discografia mínima dos Yes. O momento até nem foi mal escolhido porque tinham acabado de sair versões remasterizadas dos discos antigos, com faixas extra e com umas capinhas todas bonitas, daquelas que fazem um figurão na prateleira. Assim, conheci finalmente o “The Yes Album”, o “Fragile” e o “Close to the Edge”. Os três são fantásticos, mas a minha preferencia recai sobre o primeiro: entre outras razões porque inclui as duas primeiras músicas que ouvi dos Yes e que ainda hoje me fascinam. Deste lote o “Fragile”, o primeiro disco com a participação de Rick Wakeman, parece-me ligeiramente menos equilibrado, culpa duma ou outra xaropada que hoje em dia já não faz grande sentido (como o “Cans and Brahms”). Em compensação, nesta edição, traz como bónus uma versão de “America” do Paul Simon, que é de se lhe tirar o chapéu.
Entretanto, e tal como da outra vez, interpuseram-se outros objectivos musicais e o Yes ficaram por aqui, de qualquer forma, um destes dias, tenho de voltar à carga e juntar o “Yessongs” à colecção.

7.12.04

O reino dos King Crimson, tomo I

Era uma vez um guitarrista chamado Robert Fripp que gostava muito de fazer experiências inovadoras. Um dia, decidiu juntar-se a três outros músicos e formar uma banda a que chamaram King Crimson. Podia começar assim a história da primeira fase do reinado de Fripp e dos seus parceiros no mundo do “rock progressivo”, situada entre o final dos anos 60 e os primeiros anos da década seguinte.
Depois de um “single” de estreia editado em 1968, os King Crimson provocaram grande agitação com o lançamento do seu primeiro álbum, “In The Court Of The Crimson King”, a que se seguiram três outros discos que, embora não tenham recolhido o mesmo nível de referências elogiosas, surgem agora, observados à distância, como obras que alargaram inquestionavelmente as fronteiras do “rock”. Aqui ficam curtas notas de uma viagem de volta ao universo daqueles discos.

“In The Court Of The Crimson King” (1969) – A abertura, através de “21st Century Schizoid Man”, transformou-se num clássico. A secção instrumental que surge a meio do tema sublinha o terreno alucinante e demencial que foi escolhido como cartão de visita da banda. “I Talk to the Wind” propõe umas tréguas apaziguadoras, com as flautas a abrirem caminho para a descompressão. Mais à frente, “Moonchild” arranca com o som hipnotizante que iria, no futuro, tornar imediatamente reconhecível o trabalho de Robert Fripp na guitarra eléctrica. Com a segunda metade preenchida de uma intrigante cacofonia, este parece ser o melhor tema do álbum, já que “Epitaph” e “The Court of the Crimson King”, excessivamente dominados pelo “mellotron”, dão a sensação de terem envelhecido mal.

“In The Wake Of Poseidon” (1970) – Os King Crimson foram acusados, quando da edição deste álbum, de se terem limitado a um exercício de mimetismo em relação ao seu 33 rotações de estreia. O argumento tem a sua razão de ser mas não impede o disco de contar com diversos momentos altos. “Pictures Of A City”, por exemplo, assenta sobre uma excelente linha melódica assegurada pela guitarra e pelo saxofone que poderia muito bem ser recuperada para a banda sonora de um “thriller”. O solo de Fripp nesta faixa também se recomenda, bem como o trabalho do baixo e da bateria. Segue-se uma balada de méritos indiscutíveis em “Cadence And Cascade”, com a flauta novamente a assegurar uma parte do protagonismo. “Cat Food” inclui uns saborosos devaneios no piano e o remate do refrão podia muito ter sido inventado por Frank Zappa. Para concluir, se “In The Wake Of Poseidon” também parece não ter resistido à passagem do tempo, “The Devil’s Triangle” mantém a sua graça, sobretudo pelos motivos de inspiração que terá fornecido aos Genesis para elaborarem o arranque do “mellotron” em “Watcher Of The Skies”, incluído no álbum “Foxtrot”.

“Lizard” (1970) – Representa uma viragem na música dos King Crimson, revelando a sensibilidade da banda em relação àquilo que, pela altura em que o disco foi editado, eram as tendências do movimento de fusão liderado por Miles Davis. “Cirkus” e “Happy Familly”, descontando o solo de saxofone e a parte do trompete no primeiro tema, não são suficientemente convincentes. Mas o mesmo não se passa nas restantes três faixas, começando por “Indoor Games” e seguindo para “Lady Of The Dancing Water”, mais uma balada para ficar entre o que de melhor os King Crimson produziram nesta fase da sua carreira. O prato forte, que na edição original preenchia a totalidade do lado B do 33 rotações, é o tema que fornece o título a este disco. A voz na primeira secção de “Lizard” é assegurada por Jon Anderson, dos Yes, uma escolha louvável tendo em conta que a voz de Gordon Haskell, à época vocalista oficial, nem sempre se mostra à altura das circunstâncias. A passagem instrumental, onde os sopros se mostram brilhantes, com destaque inicial para o oboé, constitui uma “paragem” obrigatória em qualquer passeio de regresso a este disco.

“Islands” (1971) – Causticado pela crítica quando do seu lançamento, “Islands” foi simultaneamente elogiado por Robert Fripp, circunstância rara no habitualmente circunspecto líder da banda. O tempo deu razão a Fripp retirando-a, na proporção inversa, aos que classificaram apressadamente “Islands” como um trabalho de escassa qualidade. Boz Burrell, que mais tarde iria integrar os Bad Company no posto de viola-baixo, assegura as vocalizações, com evidentes vantagens em relação ao anterior inquilino do lugar. Trata-se, de facto, de um disco de mais fácil apreensão em comparação com as gravações anteriores mas será difícil ver nisso caso para desmerecimento. Onde os cépticos viram um desnecessário prolongamento dos temas com o presumível objectivo de encher o espaço de um LP, encontram-se, pelo contrário, boas razões para se gostar deste álbum, o que fica claro logo a partir de “Formentera Lady” e da sua introdução através do contrabaixo friccionado com o arco. “Sailor’s Tale” é um instrumental poderoso, “The Letters” evidencia um carácter trovadoresco e “Ladies Of The Road” deixa perceber por que era uma das canções preferidas de Fripp. “Song Of The Gulls”, mais um belo instrumental assegurado pelas cordas e pelo oboé, antecede o remate intimista e emocionalmente intenso proporcionado pela faixa que baptiza todo o trabalho.

Sei que é “politicamente incorrecto” mas não resisto a confessar que, actualmente, o meu disco favorito entre os quatro citados é “Islands”, ainda hoje merecedor de algum desprezo por parte dos peritos na matéria. Resta garantir que as versões em CD, lançadas a partir de 2000, têm um som substancialmente melhorado. E as que tenho em minha posse têm capas em cartão que respeitam integralmente todo o trabalho gráfico original. Não se podia pedir mais nem melhor para recordar uma banda como os King Crimson.

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6.12.04

"Celebrating Tony Williams"

Meio por acaso, descobri que no período que coincidia com uma recente estadia na capital espanhola decorria o XXI Festival de Jazz de Madrid. Em frente ao computador, a olhar para o programa do evento, vi que este incluía um concerto do John Scofield, um dos meus guitarristas preferidos no jazz, acompanhado na bateria por Jack DeJohnette, para vários críticos um dos melhores bateristas da actualidade, e Larry Goldings no órgão. O facto de o espectáculo se incluir numa digressão intitulada “Celebrating Tony Williams”, uma homenagem dos três músicos ao baterista falecido em 1997 - e para mim totalmente desconhecido -, não me fez hesitar nem um momento e lá tratei de comprar o bilhete a pensar “Isto é que é sorte: John Scofield e Jack DeJohnette duma vez só!”.
Na tarde do dia 14 lá estava eu às portas do Centro Cultural de la Villa, à espera para entrar no anfiteatro. A sala, que deveria ter aproximadamente 300 lugares, encheu e foi curioso observar a diversidade dos espectadores já que havia de tudo, de jovens cabeludos a insuspeitas senhoras de avançada idade, passando por alguns turistas.
Chamem-me básico, ou duro de ouvido, mas tenho de confessar que não obstante a opinião generalizada sobre o Jack DeJohnette, nem sempre lhe acho grande piada. No trio com o Keith Jarrett, onde mais vezes o escutei, parece-me que por vezes ele está num estado de evolução musical tão avançado que - culpa minha - não consigo ouvi-lo a marcar o ritmo, aquilo que considero ser a tarefa fundamental da bateria. Ora, logo na primeira música, um standard que o Tony Williams também costumava tocar, fiquei positivamente impressionado com esta nova versão do DeJohnette. Neste registo “eléctrico” o baterista tinha outra energia, outra postura, e para além de marcar o ritmo duma forma que eu percebia, fazia-o dum modo bastante entusiasmante.
Mas o pior estava para vir. Agora já sei, mas na altura não sabia, que o Tony Williams para além de ter tocado com o Miles Davis no seu quinteto clássico dos anos 60, fez carreira com um grupo chamado Lifetime, um trio com o guitarrista John McLaughlin e com o organista Larry Young que se movia, sobretudo, nos territórios da fusão e do free jazz. Era este Tony Williams que o concerto que eu assistia queria homenagear.
Pois, na segunda música apercebi-me donde me tinha metido. Se há coisa que não consigo apreciar, e não é por falta de tentativas, é precisamente esse jazz de fusão e o free jazz que me soa sempre a cacofonia disfarçada em excesso de técnica. Logo na segunda canção, um original de Tony Williams, os três músicos no palco mostraram à plateia aquilo a que vinham. Do que me lembro, parecia-me que cada um tocava para o seu lado, em simultâneo, sobrepunham-se solos sem eu deslindar nenhum ponto em comum entre eles, e havia sempre um aborrecido solo de bateria, de duração exagerada, que servia para confirmar a minha teoria de que as baterias não são o instrumento mais adequado para criar melodias. Para surpresa minha, que estoicamente me mantive sentado até ao final (e o concerto demorou mais de duas horas, com direito a um encore), a plateia regozijava-se com o que ouvia e aplaudia com aparente entusiasmo cada uma actuações.
Mas nem tudo foi mau. Se quando interpretavam músicas dos Lifetime a coisa era menos suportável, quando tocaram clássicos que o Tony Williams também tocou em vida, como Coltrane ou Joe Henderson, houve momentos bem agradáveis, de boa música, pela mãos de excelentes executantes.
Infelizmente, estes momentos foram a minoria e mesmos estes não os pude apreciar ao máximo. Por um acaso do destino o meu lugar ficava num dos extremos da plateia. O John Scofield, o que eu mais queria ver, veio colocar-se precisamente do lado em que eu estava mas virado para o centro do palco, onde os três músicos formavam um pequeno “u”. Resultado, ao longo de quase duas horas e meia, nem por 30 segundos tive o prazer de ver as mãos dele na guitarra. As escalas, os acordes, os temas e os solos, tive de os imaginar porque ver, ver, só mesmo a parte de trás do braço da guitarra e a careca que já se faz notar.

3.12.04

Platina, bronze e latão

Mesmo a tempo de aproveitar a onda consumista própria desta época do ano, acaba de ser lançada, acompanhada de uma campanha publicitária que envolve “spots” televisivos, uma caixa com três CD que incluem o “melhor” de sempre dos Genesis. No total, esta proposta inclui 40 temas da banda que em tempos idos foi um dos nomes mais sólidos e originais do “rock progressivo”. Como a iniciativa precisava, naturalmente, de um título a condizer com a sua ambição, os seus promotores deixaram-se de modéstias e trataram de a apelidar “Platinum Collection”. Para um projecto supostamente nobre, nada melhor do que aplicar-lhe a designação do mais nobre dos metais. Pois então.
O problema é que dois dos CD em apreço são quase integralmente preenchidos com o que de mais desinteressante e enjoativo os Genesis fizeram durante o largo período em que se mantiveram em actividade, o que representa aproximadamente 30 anos caso se contabilize o tempo que decorreu entre a edição do seu primeiro álbum de originais – “From Genesis To Revelation”, de 1969 – e o que, até à data, foi o seu derradeiro – “Calling All Stations”, de 1997. Trocando por miúdos. Nos dois discos que abrem a celebração podem encontrar-se as numerosas cançõezinhas anódinas que Phil Collins e os seus companheiros se dedicaram a fazer entre o final dos anos 70 e os exercícios mais recentes, entre as quais se incluem “No Son Of Mine”, “Invisible Touch”, “I Can’t Dance” e o inclassificável, à luz dos velhos pergaminhos da banda, “Follow You, Follow Me”.
O tom agoniante dos conteúdos da caixa, que na capa até evoca com bom gosto algumas das obras mais influentes do grupo britânico, só começa a dar sinais de correcção quando já se está bem dentro da metade final do segundo disco. É aí que se podem reencontrar temas instrumentais que, embora gravados sem o contributo de Peter Gabriel, ainda se esforçavam por respeitar as boas tradições dos Genesis. São os casos de “In That Quiet Earth” e de “Los Endos”, apesar de serem intervalados pelo infeliz momento que constitui a balada “Your Own Special Way”.
O ouvinte mais pachorrento poderá perseverar na esperança de chegar ao terceiro CD incólume e de boa saúde, pelo menos no que respeita aos seus canais auditivos. Aí, sim, será recompensado dos anteriores sacrifícios através da possibilidade de mergulhar de cabeça em “The Lamb Lies Down On Broadway”, “Cinema Show”, “The Musical Box” ou no épico “Supper’s Ready”. São faixas como estas, abrilhantadas pela magia de Gabriel, que poderiam justificar a aquisição da caixa. Pergunta-se, porém: mas para quê, se os álbuns originais oferecem muito mais do que isto, nomeadamente temas que nesta “Platinum Collection” são ignorados em favor da “pop”, por vezes insuportavelmente barroca, que atirou os Genesis para a consagração nos estádios?
A atraente caixa já está nos escaparates e é demasiado tarde para sugerir alternativas ao seu título. Por mim, ainda assim, acho que a Deco devia obrigar a editora a colar um selo em cada exemplar com o aviso de que a platina só se refere a um dos discos. Em abono da verdade, os restantes são feitos de outros materiais. Um é de bronze e o primeiro é de latão.

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Remendo nº 2

Já que estou com a mão na massa, segue-se o segundo remendo:

32. "Seven Days Of Falling" - Esbjörn Svensson Trio

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Remendo nº 1

Tal como eu suspeitava, aqui vai o primeiro remendo à lista dos "Trinta discos para recordar":

31. "Dear Catastrophe Waitress" - Belle & Sebastian

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2.12.04

Trinta discos para recordar

É certo que 2004 ainda não acabou. Mas antes que jornais e revistas comecem a inundar o mercado com listas dos “discos do ano”, aqui vai uma primeira proposta. A ordem não tem qualquer significado e os trabalhos citados são apenas aqueles que tive prazer em conhecer ao longo dos últimos meses. É possível que a tabela não esteja completa, sendo preferível, até instruções em contrário, tomá-la como provisória.

1. “The Evening Of My Best Day” – Rickie Lee Jones
2. “Riot On An Empty Street” – Kings of Convenience
3. “Our Endless Numbered Days” – Iron and Wine
4. “Made To Love Magic” – Nick Drake
5. “Strings’ Spirit” – Henri Texier/Azur Quintet
6. “Eternal” – Branford Marsalis
7. “Lullabluebye” – Frank Kimbrough
8. “Live At Yoshi’s, Volume One” – Jessica Williams
9. “Live At Yoshi’s, Volume One” – Mulgrew Miller
10. “Moonlight Becomes You” – Eddie Higgins
11. “Gardenias For Lady Day” – James Carter
12. “Live At Baker’s Keyboard Lounge” – James Carter
13. “In A Safe Place” – The Album Leaf
14. “Voices From The Dust Bowl” – Fragile State
15. “The Out-Of-Towners” – Keith Jarrett Trio
16. “Standing Still, Moving Forward” – Jamie Baum
17. “Buzz” – Ben Allison
18. “Sans Souci” – Eric Longsworth
19. “Climbing The Banyan Tree” – Ravish Momin’s Trio Tarana
20. “Lift” – Chris Potter Quartet
21. “Ivey-Divey” – Don Byron
22. “Indigo” – Bernardo Sassetti
23. “Falling Up” – Geoffrey Keezer
24. “The Lost Chords” – Carla Bley
25. “Cantoma” – Cantoma (DJ Phil Mison)
26. “Astereotypical” – Pachora
27. “Live In Tokyo” – Brad Mehldau
28. “The Magic Hour” – Wynton Marsalis Quartet
29. “Strange Liberation” – Dave Douglas
30. “Berimbaum” – Paula Morelenbaum

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1.12.04

Duas boas surpresas

A curiosidade aplicada à descoberta de novos músicos e gravações é uma actividade compensadora. Numa visita recente a uma loja, que não tinha qualquer objectivo específico que não fosse o de matar algum tempo, acabei por dar de caras com dois discos que me seduziram de imediato e que acabei por trazer para casa. Seguem-se algumas notas sobre as obras em causa.

“Standing Still, Moving Forward” – Jamie Baum Septet – Na contracapa anuncia-se que esta flautista norte-americana, que vive actualmente em Nova Iorque, se inspira em Bartok, Stravinsky, Ives e noutros compositores contemporâneos para criar a sua música. As referências podem assustar pelo que prenunciam de necessidade de concentração para entender os sons em causa. Mas, não sendo um álbum que se deixe conhecer em pormenor apenas através de um par de audições, está recheado de temas que valem bem o esforço. Baum é uma compositora e executante de largos recursos e está acompanhada de um assinalável naipe de músicos. Destaco “All Roads Lead To You”, “Spring Rounds”, “In The Journey” e o “medley” que integra “From Scratch”, do percussionista Trilok Gurtu, e “Primordial Prelude”, para um primeiro contacto com a excelência da música que integra este disco e com a magia de Ralph Alessi (trompete e fliscórnio), Doug Yates (saxofone) e George Colligan (piano e piano eléctrico). Pode prosseguir-se por “Central Park”, para tomar contacto com a trompa de Tom Varner, terminando em festa com “Rivington Street Blues”. Com tudo isto, desconfio que as listas de final de ano destinadas a assinalar os “melhores de 2004” vão incluir esta gravação.

“Climbing The Banyan Tree” – Ravish Momin’s Trio Tarana – E agora, algo completamente diferente. O trio em apreço é composto por Jason Kao Hwang (violino), Shanir Ezra Blumenkranz (oud e contrabaixo) e Ravish Momin (bateria, percussão e voz). Os apreciadores de Rabih Abou-Khalil já estão familiarizados com o som do oud e, também, acerca das suas capacidades de integração com instrumentos tradicionais da música ocidental em exercícios de fusão arrebatadores, no mínimo. Em “Climbing The Banyan Tree”, o que se pode escutar é, em primeiro lugar, um violinista de invulgar qualidade, quer quando utiliza o arco como nos momentos em que opta, com humor e sentido de oportunidade, pelo pizzicato. Depois, há um conjunto de nove temas cativantes que viajam até à China, Índia e Médio Oriente para colherem a base sobre a qual os três músicos semeiam os seus elevados talentos como improvisadores. “Dai Genyo”, “Weeping Statue”, “Peace For Kabul” e “Gyarah” são apenas quatro deliciosos aperitivos para iniciar a degustação deste álbum. Se não surgir entre os “melhores” deste ano é porque alguém anda distraído.

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