Era uma vez um guitarrista chamado Robert Fripp que gostava muito de fazer experiências inovadoras. Um dia, decidiu juntar-se a três outros músicos e formar uma banda a que chamaram King Crimson. Podia começar assim a história da primeira fase do reinado de Fripp e dos seus parceiros no mundo do “rock progressivo”, situada entre o final dos anos 60 e os primeiros anos da década seguinte.
Depois de um “single” de estreia editado em 1968, os King Crimson provocaram grande agitação com o lançamento do seu primeiro álbum, “In The Court Of The Crimson King”, a que se seguiram três outros discos que, embora não tenham recolhido o mesmo nível de referências elogiosas, surgem agora, observados à distância, como obras que alargaram inquestionavelmente as fronteiras do “rock”. Aqui ficam curtas notas de uma viagem de volta ao universo daqueles discos.
“In The Court Of The Crimson King” (1969) – A abertura, através de “21st Century Schizoid Man”, transformou-se num clássico. A secção instrumental que surge a meio do tema sublinha o terreno alucinante e demencial que foi escolhido como cartão de visita da banda. “I Talk to the Wind” propõe umas tréguas apaziguadoras, com as flautas a abrirem caminho para a descompressão. Mais à frente, “Moonchild” arranca com o som hipnotizante que iria, no futuro, tornar imediatamente reconhecível o trabalho de Robert Fripp na guitarra eléctrica. Com a segunda metade preenchida de uma intrigante cacofonia, este parece ser o melhor tema do álbum, já que “Epitaph” e “The Court of the Crimson King”, excessivamente dominados pelo “mellotron”, dão a sensação de terem envelhecido mal.
“In The Wake Of Poseidon” (1970) – Os King Crimson foram acusados, quando da edição deste álbum, de se terem limitado a um exercício de mimetismo em relação ao seu 33 rotações de estreia. O argumento tem a sua razão de ser mas não impede o disco de contar com diversos momentos altos. “Pictures Of A City”, por exemplo, assenta sobre uma excelente linha melódica assegurada pela guitarra e pelo saxofone que poderia muito bem ser recuperada para a banda sonora de um “thriller”. O solo de Fripp nesta faixa também se recomenda, bem como o trabalho do baixo e da bateria. Segue-se uma balada de méritos indiscutíveis em “Cadence And Cascade”, com a flauta novamente a assegurar uma parte do protagonismo. “Cat Food” inclui uns saborosos devaneios no piano e o remate do refrão podia muito ter sido inventado por Frank Zappa. Para concluir, se “In The Wake Of Poseidon” também parece não ter resistido à passagem do tempo, “The Devil’s Triangle” mantém a sua graça, sobretudo pelos motivos de inspiração que terá fornecido aos Genesis para elaborarem o arranque do “mellotron” em “Watcher Of The Skies”, incluído no álbum “Foxtrot”.
“Lizard” (1970) – Representa uma viragem na música dos King Crimson, revelando a sensibilidade da banda em relação àquilo que, pela altura em que o disco foi editado, eram as tendências do movimento de fusão liderado por Miles Davis. “Cirkus” e “Happy Familly”, descontando o solo de saxofone e a parte do trompete no primeiro tema, não são suficientemente convincentes. Mas o mesmo não se passa nas restantes três faixas, começando por “Indoor Games” e seguindo para “Lady Of The Dancing Water”, mais uma balada para ficar entre o que de melhor os King Crimson produziram nesta fase da sua carreira. O prato forte, que na edição original preenchia a totalidade do lado B do 33 rotações, é o tema que fornece o título a este disco. A voz na primeira secção de “Lizard” é assegurada por Jon Anderson, dos Yes, uma escolha louvável tendo em conta que a voz de Gordon Haskell, à época vocalista oficial, nem sempre se mostra à altura das circunstâncias. A passagem instrumental, onde os sopros se mostram brilhantes, com destaque inicial para o oboé, constitui uma “paragem” obrigatória em qualquer passeio de regresso a este disco.
“Islands” (1971) – Causticado pela crítica quando do seu lançamento, “Islands” foi simultaneamente elogiado por Robert Fripp, circunstância rara no habitualmente circunspecto líder da banda. O tempo deu razão a Fripp retirando-a, na proporção inversa, aos que classificaram apressadamente “Islands” como um trabalho de escassa qualidade. Boz Burrell, que mais tarde iria integrar os Bad Company no posto de viola-baixo, assegura as vocalizações, com evidentes vantagens em relação ao anterior inquilino do lugar. Trata-se, de facto, de um disco de mais fácil apreensão em comparação com as gravações anteriores mas será difícil ver nisso caso para desmerecimento. Onde os cépticos viram um desnecessário prolongamento dos temas com o presumível objectivo de encher o espaço de um LP, encontram-se, pelo contrário, boas razões para se gostar deste álbum, o que fica claro logo a partir de “Formentera Lady” e da sua introdução através do contrabaixo friccionado com o arco. “Sailor’s Tale” é um instrumental poderoso, “The Letters” evidencia um carácter trovadoresco e “Ladies Of The Road” deixa perceber por que era uma das canções preferidas de Fripp. “Song Of The Gulls”, mais um belo instrumental assegurado pelas cordas e pelo oboé, antecede o remate intimista e emocionalmente intenso proporcionado pela faixa que baptiza todo o trabalho.
Sei que é “politicamente incorrecto” mas não resisto a confessar que, actualmente, o meu disco favorito entre os quatro citados é “Islands”, ainda hoje merecedor de algum desprezo por parte dos peritos na matéria. Resta garantir que as versões em CD, lançadas a partir de 2000, têm um som substancialmente melhorado. E as que tenho em minha posse têm capas em cartão que respeitam integralmente todo o trabalho gráfico original. Não se podia pedir mais nem melhor para recordar uma banda como os King Crimson.
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